Porquê ir a um mosteiro? | Ajahn Candasiri

Esta é uma pergunta que todos nos devemos fazer, quer sejamos monges, monjas, noviços ou visitantes. Porque viemos? Precisamos ser claros acerca disto para podermos beneficiar melhor do que um mosteiro tem para oferecer. Se não tivermos isto claro podemos desperdiçar muito tempo fazendo coisas que podem diminuir os possíveis benefícios que são aqui encontrados .

O Buddha falou de três fogos, três achaques que afligem os seres humanos. Esses fogos fazem-nos mover constantemente, não nos deixam descansar ou descontrair. Eles são: a cobiça, o ódio e a ilusão, em linguagempalī, lobha, dosa e moha. Por compaixão, o Buddha também esclareceu qual era o antídoto. Na verdade, estes três fogos são baseados em instintos naturais. Por exemplo, a avidez ou o desejo sensual, a energia sexual e o desejo por comida são o que permite ao ser humano sobreviver. Sem o desejo sexual nenhum de nós estaria aqui agora! E claro que sem fome ou desejo por comida não seríamos levados a ingerir a nutrição que necessitamos para manter o corpo em razoável estado de saúde. Contudo, a dificuldade surge quando perdemos a sensibilidade em relação ao que é necessário e procuramos a gratificação sensual por si só.

Outro tipo de instinto de sobrevivência é a nossa resposta ao perigo, quer enfrentemos ou ataquemos o que é percebido como uma ameaça à nossa sobrevivência, quer tentemos escapar. Esta é a base para dosa, ódio ou aversão. Claramente isto também tem um lugar importante na natureza. Mas mais uma vez, ficamos confusos e o que acabamos por defender é, não tanto o corpo físico, mas o sentido do eu pessoal que percepcionamos acerca de nós próprios, em relação ao outro.

O terceiro fogo, que muito naturalmente precede os dois anteriores, é a ilusão, moha. É o não ver realmente com clareza ou não compreender o modo como as coisas realmente são, não perceber realmente o que é ser um Ser Humano. Temos a tendência de nos vermos, a nós e aos outros, como personalidades, ou ‘eus’. Mas isto são apenas ideias ou conceitos, os quais redimensionamos em relação a outros conceitos de quem ou o quê deveríamos ser. Então, se alguém vem e desafia esse ‘eu’, isso pode criar uma forte reacção em nós; instintivamente atacamos, defendemo-nos ou tentamos fugir da presumível ameaça. Realmente, é algo de loucos , quando reflectimos acerca disso.

Tal como referi, tendo o Buddha mencionado a natureza da doença, também mencionou a cura. Isto foi transmitido sob a forma de simples ensinamentos, os quais podem ajudar-nos a viver de uma maneira que nos possibilita conhecer, e por conseguinte, libertarmo-nos dessas doenças e também evitar fazer coisas que as agravem.

Isto conduz-me à real razão que nos traz a um mosteiro. Queremos libertar os nossos corações da doença, dos laços do desejo e da confusão: reconhecemos que o que nos é ofertado aqui é a possibilidade de realizar isto. É claro que podem haver outras razões: algumas pessoas realmente não sabem porque vieram, elas simplesmente sentem-se atraídas pelo lugar.

Então, mas o que é que se passa no mosteiro que é diferente do que se passa fora dele?… É um local que nos relembra da nossa aspiração e potencial. Lá estão as belas imagens, do Buddha e dos seus discípulos, que parecem irradiar um sentimento de calma, tranquilidade e estado de alerta. Também aqui encontramos uma comunidade de monges e monjas que decidiram viver seguindo o estilo de vida que o Buddha recomendou para curar essas doenças.

Tendo reconhecido que estamos doentes e que precisamos de ajuda, começamos a ver que a cura está em direcção oposta aos caminhos do mundo. Vemos que se nos vamos curar a nós próprios, precisamos primeiro compreender a causa da doença, que é o desejo. Então, precisamos de compreender os nossos desejos para ficarmos livres e para sermos um Eu separado deles. Assim, ao invés de seguirmos os nossos desejos, examinamo-los de perto.

A disciplina que seguimos é baseada em preceitos, os quais, usados sabiamente, criam um sentido de dignidade e de auto-respeito. Eles refreiam-nos acções ou palavras que são prejudiciais a nós próprios e aos outros, e delineiam um padrão de simplicidade ou renúncia. Perguntamos a nós próprios ‘O que é que eu realmente preciso?’ ao invés de responder às pressões da sociedade materialista.

Mas como é que os preceitos nos ajudam a perceber estes três fogos? De um certo modo, o que a nossa disciplina monástica nos oferece é um receptáculo com o qual podemos observar o desejo assim que ele desponta. Colocamo-nos deliberadamente numa forma que, prevenindo-nos de seguirmos todos os nossos desejos, nos permite identificá-los e observar como mudam. Normalmente, quando somos apanhados no processo dos desejos, não existe qualquer noção de objectividade. Tendemos a ficar totalmente identificados com eles sendo então muito difícil de os identificar ou de fazer algo em relação deles. Em vez disso, somos normalmente arrastados por eles.

Assim, como no caso da luxúria ou da aversão, podemos reconhecer que estas são energias naturais que todos têm. Não estamos a dizer que é errado, por exemplo, ter desejo sexual ou mesmo de o seguir nas circunstâncias apropriadas, mas reconhecemos que isso é para um propósito particular e que trará um certo resultado. Como monges e monjas decidimos que não queremos ter filhos. Também reconhecemos que o prazer da gratificação é muito fugaz, em relação a responsabilidades e possíveis implicações a longo prazo. Portanto escolhemos não seguir o desejo sexual. Contudo, isto não significa que nós não o experienciamos; que assim que rapamos as nossas cabeças e que pomos um hábito paramos imediatamente de experienciar qualquer tipo de desejo. Na verdade, o que pode acontecer é que a nossa experiência desses desejos aumenta quando vimos para um mosteiro. Isto acontece porque na vida de leigos podemos fazer todo o tipo de coisas para nos sentirmos bem, normalmente sem termos consciência do que estamos a fazer. Algumas vezes existe apenas uma subtil noção de desconforto, seguida por um movimento em direcção ao exterior, de modo a alcançar algo que nos alivie, movimentando-nos de uma coisa para a próxima. No mosteiro já não é tão fácil fazermos isto. Atamo-nos deliberadamente de modo a podermos olhar para as nossas motivações, energias ou desejos, que de outra forma simplesmente nos manteriam em movimento. Agora poderão perguntar: mas que tipo de liberdade é esta? Atando-nos a nós próprios numa situação em que somos constantemente reprimidos, tendo sempre que nos conformar? Tendo sempre que nos comportar de uma determinada maneira; de fazer vénias de uma determinada maneira e em determinadas alturas; cantar a uma determinada velocidade e tom; sentar num lugar especifico ao lado de pessoas específicas (há quinze anos que me sento atrás da Aj.Sundara!)… Que tipo de liberdade é esta? Isto traz liberdade da escravidão do desejo. Mais do que, sem qualquer esperança, cegamente ser puxado de um lado para o outro pelo nosso desejo, nós somos livres para escolher actuar de maneiras que são apropriadas, em harmonia com aqueles ao nosso redor. É importante perceber que “libertação dos desejos” não significa “não ter desejos”. Poderíamos nos sentir muito culpados e realmente debatermo-nos se pensássemos dessa forma. Tal como disse anteriormente, o desejo é parte da natureza, apenas tem sido distorcido como resultado do nosso condicionalismo, do nosso crescimento, dos valores da sociedade e da educação. Nós não nos vamos ver livres dele sem mais nem menos, apenas porque queremos, ou porque sentimos que não deveríamos ter desejo. Na verdade isto requer uma abordagem mais subtil. A forma monástica e os preceitos ajudam-nos a criar um espaço pacífico em torno dessas energias de forma a que, quando elas surgem, possam extinguir-se por falta de combustível. É um processo que requer grande humildade, pois primeiro temos que reconhecer que o desejo está lá, o que pode trazer muita clareza acerca dos nossos defeitos. Frequentemente, particularmente na vida monástica, os nossos desejos podem ser extremamente mesquinhos; o sentido do nosso eu pode ser trazido à tona em coisas muito triviais. Por exemplo, pode ser que tenhamos uma ideia muito forte acerca de como as cenouras devem ser cortadas; assim, se alguém sugere que o façamos de maneira diferente podemos ficar muito alterados e tomar uma atitude defensiva! Precisamos ser muito pacientes, muito humildes.

Felizmente, existem alguns pontos de referência simples, ou Refúgios, que podem nos providenciar segurança e uma noção de perspectiva, no meio do mundo caótico dos nossos desejos. Estes Refúgios são, evidentemente, Buddha, Dhamma, Sangha. O Buddha, o nosso professor, é também aquele que existe interiormente em nós, que vê as coisas como elas são, com clareza, não sendo confundido ou perturbado pelas sensações impressas; o Dhamma, o ensinamento ou a verdade, as coisas como realmente são, bastante diferentes das nossas ideias à cerca delas; e o Sangha, a linhagem ou comunidade daqueles que praticam e, também, a nossa aspiração de viver de acordo com aquilo que sabemos ser verdade, ao invés de seguir todos os tipos de impulsos confusos e egoístas, que eventualmente emergem.

O Buddha sugeriu algumas formas simples de transformar a nossa vida nesse sentido. Essas são chamadas as “Fundações da Plena Atenção”. Uma das que uso bastante na minha prática é a plena atenção do corpo. O corpo pode ser um muito bom amigo pois ele não pensa! A mente, com os seus pensamentos e conceitos pode sempre confundir-nos, mas o corpo é muito simples e podemos notar como é que ele está no momento. Por exemplo, se alguém age ou fala de uma forma que me  intimida, posso notar a minha reacção instintiva, que é criar tensão numa atitude defensiva e talvez responder de um modo agressivo. Contudo, quando eu estou consciente do processo posso escolher não reagir dessa maneira. Ao invés de respirar fundo e de seguida empolgar-me,  posso concentrar-me na expiração, relaxando de modo a tornar-me uma presença menos ameaçadora para a outra pessoa. Se, através da plena atenção, eu poder abrir mão da minha atitude defensiva, os outros também podem relaxar ao invés de se perpetuar o processo de reactividade. Deste modo podemos trazer um pouco de paz ao mundo. As pessoas que visitam mosteiros, muitas vezes mencionam a pacífica atmosfera que lá encontram. Mas isto não é porque todos se sentem muito pacíficos ou experienciando a graça ou felicidade continuamente; eles podem estar a experienciar todos os tipos de coisas. Na verdade, uma irmã disse que nunca havia experienciado tanta fúria homicida ou tão poderosos sentimentos de luxúria, até ter entrado para a comunidade monástica! O que é diferente num mosteiro é a prática. Então, seja o que for que os monges e as monjas estejam a experienciar, eles estão pelo menos a fazer o esforço de estarem com isso presente, suportar com paciência, ao invés de sentirem que não deveria ser assim.

A forma monástica oferece uma situação na qual a renúncia e a restrição são as condições próprias para o aparecimento de sentimentos ardentes; mas também existe a presença de outros samanas que ajudam a reafirmar a confiança. Quando realmente estamos a atravessar algum processo mais difícil, podemos falar com um irmão ou irmã mais experiente cuja resposta será provavelmente algo do género: Oh sim, não te preocupes à cerca disso, isso vai passar! Isso também me aconteceu! É normal, é simplesmente parte do processo de purificação. Sê paciente. Então encontramos a confiança para continuar, mesmo quando tudo parece desmoronar-se ou tudo parece completamente louco dentro de nós.

Indo a um mosteiro encontramos pessoas que querem investigar e perceber a origem causadora da ignorância humana, do egoísmo e de todas as coisas abomináveis que acontecem no mundo; pessoas que querem ver dentro de seus próprios corações e testemunhar a avareza e a violência que outros, lá fora, estão sempre preparados para criticar. Através de experienciar e de saber essas coisas aprendemos como fazer paz, aqui mesmo, nos nossos corações, de forma a que elas cessem. Então, talvez, ao invés de simplesmente reagirmos perante a ignorância da humanidade e contribuir para a confusão e violência que vemos à nossa volta, sejamos capazes de agir ou falar com sabedoria e compaixão de maneira que ajude a trazer uma noção de bem-estar e harmonia entre as pessoas.

Não é, portanto, uma fuga, mas uma oportunidade de darmos a volta e enfrentarmos todas as coisas que havíamos procurado evitar em nossas vidas. Através de, calmamente e corajosamente compreendermos as coisas tal como elas são, começamos a libertar-nos de dúvidas, ansiedades, medo, avareza, ódio e de todo o resto que constantemente nos prende em reacções condicionadas. Aqui temos o suporte de bons amigos, de uma disciplina e de ensinamentos para nos ajudar a mantermo-nos num percurso no qual por vezes parece impossível continuar!

 Possamos todos realizar a verdadeira liberdade. Evam.

Tradução de Appamado Bhikkhu