Do Conflito à Cura |

Ajahn Bodhipala, que antes dava pelo nome de Renée Pan, veio para Amaravati pouco depois de oferecer a sua vida ao Buda como monja – abdicando do trabalho político e social no seu país de origem, Camboja, e tendo previamente deixado os filhos já criados e uma carreira bem-sucedida na América. Desde há uma década que ela é membro da comunidade de monjas de Amaravati. O que se segue é uma condensação de várias conversas que a Ajahn Bodhipala teve com a FSN [Forest Sangha Newsletter].

Nascida no Vietname de mãe vietnamita e pai cambojano-francês no interior sem fronteiras da “Indochina” francesa, Renée, então com 12 anos, faz a desoladora escolha de pedir para se separar da mãe no Vietname e se juntar a familiares paternos para uma nova vida no Camboja.

“Posso ir para o Camboja?”

Porque é que pediu para ir? Eu chumbei no exame para entrar no liceu. Na altura, a minha tia e o marido do Camboja vieram visitar a nossa família pela primeira vez desde que eu nascera, e eu pedi para ir com eles. Eu queria um começo novo. Queria uma educação superior. Queria ter o cabelo encaracolado – com eles eu teria a oportunidade de uma vida nova.

A minha família era pobre comparada com os nossos parentes no Camboja. O meu pai trabalhava por conta própria; tinha tido uma loja de bicicletas, depois tornou-se taxista. Os pais tinham morrido quando ele era pequeno e ele fora mandado para familiares no Vietname, onde conheceu a minha mãe. O meu pai era o ganha-pão e a minha mãe certificava-se de que nós estávamos saudáveis e bem alimentados, de que nos portávamos bem e éramos bem-educados. Todos os dias ele lhe perguntava:

– De quanto precisas hoje?

Ela respondia, por exemplo:

– Preciso de quinze dólares. – E nesse dia ele andava com o táxi com o objectivo de fazer esse dinheiro, nem mais nem menos. Se ele quisesse algo extra para si, então talvez fizesse mais uma corrida.

A irmã cambojana-francesa do meu pai, Emily, não tinha filhos, e pedira autorização aos meus pais para adoptar a minha irmã mais velha quando ela era pequena. Mas por alguma razão a minha tia Emily não veio até a minha irmã ter 17 anos; quando ela foi para o Camboja, casou-se ao fim de pouco tempo. Então eu era a pessoa certa. Tendo chumbado no exame, em desespero, sem outra alternativa que não deixar o Vietname, era a oportunidade perfeita para eu pedir para me ir embora, bem como para a minha tia me adoptar. Perguntei à minha mãe se podia ir. Ela ficou muito hesitante. Foi mesmo muito difícil para ela tomar essa decisão. Por fim, teve a ajuda da sua própria mãe:

– Deixa-a ir, para que se possam ajudar uma à outra.

E a minha mãe concordou em deixar-me ir. Ela era a minha heroína: foi preciso ser muito forte para me deixar ir atrás de um futuro melhor.

Na noite antes de partir, dormi com ela. Chorámos as duas. Na manhã seguinte o meu pai levou-nos de carro à estação rodoviária. Eu disse adeus e vi-o pela janela até desaparecer. Senti-me tristíssima.

               No Camboja, tive de voltar ao primeiro ano, mas ao fim de três anos passei no exame para o terceiro ciclo com distinção. O meu pai adoptivo era capitão do exército, e nós mudávamo-nos muitas vezes. Por isso, e por eu ser uma aluna brilhante, a irmã da minha avó sugeriu que eu continuasse a escola em Phnom Penh, e vivesse com a filha dela, a minha tia Sounareth.

               Eu sentia que os Cambojanos eram o meu grupo, e estava muito feliz. Levou-me cerca de dois anos a aprender a língua, que é completamente diferente do vietnamita.

               Em Phnom Penh, fui apresentada à vida aristocrática, uma vez que a família da minha tia Sounareth tinha ligações à família real por afinidade. Eu mantive o meu estilo de vida simples; não estava interessada em juntar-me à cena social de classe alta. Lá no fundo, eu sentia que só a educação me poderia transformar numa mulher com valor e riqueza. Estudei muito, e formei-me com distinção.

               A sua família era budista? Qual era a sua relação com a religião? No Camboja toda a gente assumia que a minha família era budista porque o Camboja é um país budista – cerca de 98 por cento antes de 1975. Embora o lado da família do meu pai fosse francês e portanto cristão, eu frequentava mais templos budistas do que igrejas. Cristãos, budistas e muçulmanos, viviam todos em harmonia.

               O seu marido desempenhou um papel importante na sua vida. Como é que se conheceram? Conhecemo-nos em Battambang, nas férias de Verão. Ele estava a preparar-se para o exame para a universidade e eu para o exame de entrada no terceiro ciclo. Os alunos tinham de passar em imensos exames! Só ficava a nata da nata, os outros tinham de deixar a escola logo cedo se não passassem. Ele ensinou-me matemática. Eu tinha 14 anos e ele tinha 21, era um excelente aluno e tinha uma voz doce. O pai dele era um monge conhecido. Desse Verão em diante, o Sothi foi o meu namorado.

               Ele passou e recebeu uma bolsa para estudar no Japão; eu passei e acabei o terceiro ciclo. Ele deixou-me com amor e com um incentivo para continuar a escola. Trocámos muitas cartas durante essa altura.

               Casámo-nos pouco depois de ele regressar – sete anos depois de nos termos conhecido. Ele trabalhou como engenheiro e deu aulas numa escola profissional até ter recebido uma bolsa para trabalhar no seu doutoramento nos Estados Unidos. Eu fui lá ter um ano depois, em 1963, depois do nascimento do nosso primeiro filho. Estávamos em Athens, Ohio. Enquanto ele estava na escola, eu cuidava do menino e quando eu estava na escola, cuidava ele. Voltámos a casa em 1969 com dois filhos, outro bebé a caminho e dois cursos: um doutoramento em Educação e um bacharelato em Matemática.

               Em 1970 deu-se o golpe de Estado e o Camboja foi declarado uma República. O meu marido foi nomeado embaixador itinerante do continente africano e depois tornou-se Ministro da Educação. Eu trabalhei como directora das relações externas no Ministério da Cultura. A minha vida era muito preenchida, com trabalho social e político – não era tão fácil como eu desejava. Com o Sothi, o meu papel era ser não apenas sua mulher, mas também sua amiga e mãe. Enquanto sua amiga, eu acompanhava-o a encontros políticos e muitas vezes ele pedia-me opinião. À noite, antes de ir para casa, lia os jornais e fazia-lhe um relatório, preparava o jantar para amigos e recebia diplomatas que estavam de visita.

“Querida, tens de partir.”

Entretanto as coisas ficaram muito difíceis no Camboja? Sim, os bombardeamentos aéreos eram constantes à medida que os Khmer Vermelhos se aproximavam de tomar o país. Nessa altura, o Sothi era vice-primeiro-ministro, responsável por três ministérios. Eu aproveitei a oportunidade para ajudar crianças, mulheres e refugiados desfavorecidos que vinham para a cidade. Phnom Penh estava a abarrotar nesse período.

Quando os Khmer Vermelhos estavam a assumir o comando, o Embaixador dos Estados Unidos enviou uma carta aos membros do Gabinete convidando a abandonar o local com ele dentro de dois dias. Mas nós não fomos incluídos: o embaixador sabia que o meu marido provavelmente escolhia ficar se lhe fosse dado muito tempo para pensar no assunto. Portanto, recebemos um convite por telefone apenas duas horas antes da evacuação. À pressa, o Sothi preparou os nossos documentos para a viagem e eu preparei as malas e as crianças. No caminho para a Embaixada dos Estados Unidos, ele pediu-nos para o deixarmos primeiro na casa do Primeiro-Ministro e mandou o condutor de volta para me ir buscar.

Eu fiquei surpreendida quando cheguei à Embaixada dos Estados Unidos por lá ver tanta gente a tentar entrar – estava um caos. Esperámos na embaixada um bocado, depois embarcámos num helicóptero enorme. O meu condutor regressou com um bilhetinho que dizia: “Querida, tens de partir. Eu vou ficar. Quando o Camboja estiver em paz, voltamos a ver-nos.”

Nunca mais o viu, só recebeu esse bilhete? Recebi esse bilhete: “Querida, tens de partir.” Ele escolheu ficar e eu não suportava a ideia de o desincentivar. Assim seja. Ele não podia partir. Eu estou orgulhosa dele. Parti a 12 de Abril de 1975.

Havia centenas de pessoas no submarino para onde nos levaram, e aí conheci o Ministro da Educação e o Presidente. Fomos levados para a Tailândia, e aqueles de entre nós que estavam na política foram para a Embaixada do Camboja em Banguecoque para esperar que algo acontecesse e ver as notícias. Eu tentei telefonar ao meu marido de lá. Houve muita gente a instigar-me:

– Porque é que não convences o teu marido de que ele não pode ficar?

Fiquei na Tailândia dois meses. Depois levaram-nos para Camp Pendleton, na Califórnia. Eu tinha saído do Camboja em Abril e em Agosto decidi ficar nos Estados Unidos, para os miúdos fazerem a escola. O meu segundo filho nascera quando estávamos em Ohio, por isso já tinha cidadania. Isso permitia-nos sair do campo. Telefonei a um amigo próximo nessa altura para me procurar a certidão de nascimento do meu filho e assim que a recebi, fomos embora. Uns amigos do Summer Institute of Linguistics que o meu marido tinha ajudado a montar uma escola de inglês no Camboja, souberam que eu tinha saído e então foram a correr perguntar-me:

– Do que precisas?

Eu queria voltar a estudar. Eles disseram:

– Muito bem, vamos ajudar-te.

Fui para Baltimore para ficar com a família de um amigo. Depois os amigos do Summer Institute e outro amigo da Embaixada dos Estados Unidos fizeram-me ofertas. Tive de escolher uma – vieram as duas ao mesmo tempo. Uma era “Tenho uma bolsa para ti em Dakota do Norte” e a outra, “Tenho um trabalho para ti em Washington DC a ensinar os filhos dos embaixadores. Apenas cinco ou seis por turma, portanto podes ter lá os teus filhos também.” Eu escolhi a educação. Fui para Dakota do Norte pela bolsa.

Uma grande mudança em relação ao Camboja. Oh, uma grande mudança. Quando as pessoas ouvem isso dizem: “Como é que ali foste parar? É demasiado frio!” Só que o meu sofrimento… era demasiado profundo. Eu precisava de ter algo que me desafiasse. Voltar a estudar e procurar o tópico mais difícil! Trabalhei tão arduamente porque não queria ter espaço nenhum na minha mente. Se tivesse espaço, daria em doida com o sofrimento de ficar sem ele. Ele desapareceu. Ele desapareceu. Eu tentava largar. Mas sempre que trabalhava numa tarefa simples, não conseguia lidar com isso. Tinha de pedir uma tarefa difícil – para me manter a pensar o tempo todo. Tentei substituir o sofrimento pelo trabalho árduo para preencher o vazio.

               Acabei por me aperceber de que isso não pode ser feito dessa forma. É onde entra a meditação. É preciso ver o sofrimento: a meditação permite que ele emerja e que se consiga resolvê-lo logo ali. Mas ao princípio eu tinha medo de experimentar a meditação. Pensava: Se começo a fazer meditação e não tenho um bom professor e fico desorientada, quem é que toma conta dos meus filhos? Portanto, tive de ser muito cautelosa. Mantive-me apenas a seguir a filosofia budista de fazer coisas boas pelos outros, confiando que o bem regressará à pessoa. Falava umas quantas línguas, por isso voluntariei-me para ajudar outros refugiados.

               Eu vi-o a comer cenouras

               Depois de ter obtido um mestrado em Matemática Aplicada pela University of North Dakota enquanto criava os filhos com ajuda da assistência social, Renée/Bodhipala trabalhou como programadora informática, tendo acabado por se tornar analista sénior de economia, de um grupo de empresas de energia. O seu tempo livre dividia-se entre os filhos e ajudar várias comunidades de refugiados em Dakota do Norte e Minneapolis, para onde se mudou posteriormente, após ter pedido transferência para um lugar onde pudesse ajudar mais pessoas. Quando os refugiados cambojanos começaram a afluir aos campos na Tailândia depois de o Vietname ter invadido e derrubado os Khmer Vermelhos, ela passou as férias a ir prestar ajuda. A ideia de fazer meditação foi-lhe apresentada quando ia a caminho da Tailândia em 1983, num encontro casual no aeroporto de Seul com o Ven. Maha Ghosananda, um notável monge sénior cambojano que também ia ajudar nos campos.

               Eu vi-o sentado a comer cenouras, tinha-as no saco. Dirigi-me a ele dizendo:

– Bhante, é cambojano?

Conversámos um pouco e eu perguntei-lhe:

– Bhante, como é que larga um pensamento? É que sempre que eu tenho um problema com que preciso de lidar, penso tanto que não consigo dormir.

Ele disse:

– Meditação!

Então desde aí que tenho tido a meditação em mente. Depois ele ia para os campos, eu ia para os campos, e por acaso estávamos no mesmo hotel em Aranyaprathet. Portanto, fomos juntos.

Os primeiros cambojanos a chegar à fronteira tinham estômagos proeminentes e o cabelo amarelo por causa da fome. Nós caminhámos juntos. Ele chorou e eu chorei e pensámos sobre como podíamos ajudar. Desde essa altura que trabalhamos juntos quase todos os anos. Houve anos em que fui para o campo e anos em que fui para as Nações Unidas em Nova Iorque, para trabalhar com o Presidente cambojano no exílio. Estive muito envolvida na política nesse período; inclusive considerei a hipótese de pôr os miúdos num colégio interno de modo a poder juntar-me aos combatentes pela liberdade nos campos.

Na altura estava a sofrer imenso pela perda do meu marido, por não saber se ele estava vivo ou morto, e por não conseguir deixar de odiar os Khmer Vermelhos. Eu tinha em mente a ideia de que precisava de ajudar, e fiz sempre algo pelos Cambojanos nos campos. Mas não podia fazer mais, porque a minha obstrução emocional eram os Khmer Vermelhos. Sempre que queria fazer alguma coisa, era como se eles estivessem à minha frente, e então eu não conseguia avançar. Podia ver os filhos dos Khmer Vermelhos no campo de refugiados dos Khmer Vermelhos. Eles eram tão puros, tão limpos – não eram assassinos. Não eram meus inimigos. Os pais deles é que eram o meu inimigo. Não os conseguia perdoar. É veneno. Não se consegue pensar para além disso.

Devido ao sofrimento em que eu estava, uns amigos no Minnesota que trabalhavam para uma organização chamada Moral Rearmament, que foi criada depois da Segunda Guerra para reconciliar países europeus, convidaram-me para ir a um evento. Eles tinham muitos filmes, e um deles era Love for Tomorrow, a história de Irène Laure, uma reconhecida socialista francesa que fizera parte da Resistência na Segunda Guerra Mundial, e o seu filho havia sido torturado pelos Alemães. A Moral Rearmament tinha-a convidado para ir ao espaço deles em Caux, na Suíça, para falar com mulheres alemãs. Ela recusou:

– Como é que eu posso ser amiga delas? Foram elas que fizeram mal à minha família.

Mais tarde, após reflectir um pouco, mudou de ideias. Ela teve a oportunidade de conhecer essas pessoas e conseguiu perdoá-las. Entretanto a ferida estava sarada, e ela começou a construir uma ponte entre França e a Alemanha para a geração mais nova.

Eu vi esse filme. Depois caiu-me a ficha: Ela consegue perdoar os Alemães. Eu acho que consigo perdoar os Khmer Vermelhos. Foi a primeira percepção de perdão. Mas assim como veio, foi. Uma amiga minha que lá estava viu-me e disse:

– Gostavas de conhecer essa senhora?

Eu respondi:

– Oh, gostava de a conhecer, sim.

Então eles fizeram com que fosse possível eu ir a Caux. Pagaram-me um período extra de férias e deram-me um bilhete. Fui lá passar duas semanas.

O silêncio é a chave

A Irène Laure estava lá. Tinha 84 anos. Um dia, eram três da tarde, levaram-me a tomar chá com ela na sala de estar. Ao fim de algum tempo, eu perguntei:

– Madame Irène Laure, qual é a chave para ser capaz de perdoar os Alemães?

Ela disse:

– A chave para mim é estar algum tempo em silêncio.

E eu perguntei a mim mesma: O que é “estar em silêncio”? Tomei uma chávena de chá com ela e depois terminámos.

Mais tarde perguntei ao David Channer, que se tornou um grande amigo na Moral Rearmament:

– David, o que é “estar em silêncio”?

– És budista? – perguntou ele.

– Sim.

– É meditação.

Nessa noite pedi à minha amiga que me levara lá que me ensinasse o que era “estar em silêncio”. Eu sabia que eles eram cristãos, por isso levei alguns textos de cânticos budistas, e ela disse-me:

– Escolhe uma passagem dos textos e memoriza-a ou retém o pensamento sobre ela.

A diferença entre aquilo e a nossa meditação é que eles têm um assunto sobre o qual trabalham. Nós não, limitamo-nos a limpar a mente observando a sua própria actividade.

Eu fiz aquilo durante vários dias; aprendi a “estar em silêncio”, aprendi a ouvir uma voz interior. Depois participei num workshop chamado From Conflict to Cure, e o perdão chegou. Eu vi lá o perdão e perdoei os Khmer Vermelhos.

Pediram-me para fazer uma pequena apresentação para toda a gente sobre perdão. Eu aceitei. Na noite da véspera, disse vezes sem conta: “Khmer Vermelhos, eu perdoo-vos.” E escrevia – não preguei olho a noite toda por estar tão perturbada com isso. Só escrevia: “Khmer Vermelhos, eu perdoo-vos por tudo o que fizeram.” Depois amarrotava o papel e deitava-o fora, uma vez atrás de outra. Até que o fim da noite chegou e eu escrevi: “O tempo esgotou-se.” E sofri, o meu coração sofreu imenso. E então, ao fazer isso, vi que os Khmer Vermelhos… eles não estavam em sofrimento; sou eu que não consigo dormir, sou eu que tenho uma prisão dentro de mim. Se conseguir deixá-la sair, consigo fazer muita coisa, e eu precisava de ajudar o meu país.

               Nesse dia tive de falar para a plateia. A minha mente aceitou: Tenho de os perdoar. Não há outra solução. E do fundo do meu coração chegou-me isto: Khmer Vermelhos, eu vou perdoar-vos pelo que fizeste. E em troca peço-vos para também me perdoarem por vos ter odiado. Em ambos os sentidos.

               Chegou a minha vez de falar. Eu estava diante de muita gente mas a minha voz não estava trémula, o meu coração batia normalmente. E disse:

               – Eis-me aqui à vossa frente, meus amigos. Gostava que hoje todos vocês soubessem que estou a libertar o prisioneiro do meu coração. Eu vou perdoar os Khmer Vermelhos pelo que eles fizeram ao meu país. E pedir-lhes-ei que me perdoem pelo ódio.

               Uau! Muito forte. As pessoas choraram. Eu não chorei. Depois… ficou tudo muito silencioso. Conseguia-se ouvir um alfinete a cair. E eu pedi ao mestre-de-cerimónias:

               – Conceda-me mais um minuto para expressar o que sinto neste momento, por favor. – Então disse:

               – Agradeço-vos imenso por me aliviarem do meu fardo. – E senti-me tão quente e tão leve, que era capaz de voar.

               “Se quer saber, eu matava-os.”

               Quando cheguei a casa, o meu filho desafiou-me. Ele teria uns 20 anos.

               – O que fizeste em Caux, mãe?

               – Bem, a mãe decidiu perdoar os Khmer Vermelhos.

               O quê? Ele deu um pulo e disse:

               – Como assim?… Desculpe que lhe diga, mãe, mas está maluca? Vai dizer àquelas pessoas… aos pais, às mães dos filhos que eles mataram diante dos seus olhos, atirando-os ao ar para os apanhar com a baioneta? E a mãe diz-lhes para perdoarem? Nem pensar.

               Eu estava calma.

               – Filho, que solução é a tua? A mãe tentou resolver as coisas dessa forma. Tu não tens de as resolver mas qual é a tua solução?

– Se quer saber, eu matava-os.

– Tu matavas quem?

– A eles.

– Quem?

               – Pol Pot, o líder dos Khmer Vermelhos.

               – Mas ele não está sozinho.

               – O que vem a seguir a ele e a seguir e a seguir…

Tantos “a seguir e a seguir…” Então eu disse:

               – Neste momento, tu és uma pessoa boa. Ainda não fizeste nada. Só nos teus pensamentos: quantas pessoas mataste mesmo agora?

               Ele começou a contar e depois respondeu:

               – Eu não sei o que é que a mãe está a fazer.

               Mas ele mudou. Uns anos mais tarde regressou do Corpo de Paz após três anos de serviço na África Central e adorava a mãe.

               – Tinha razão, mãe. Tinha razão – disse ele.

               Fazendo isto, conseguindo perdoar as pessoas por coisas grandes, então qualquer conflito que se tenha com os outros cai naturalmente. Até aos meus filhos, eu pedi-lhes que me perdoassem. Usávamos isso como mensagem para toda a família. Ajudou imenso. E em relação a velhos amigos… eu sentira que podia cortar com as pessoas às vezes. Inclusive o presidente dos combatentes pela liberdade e outros políticos com quem eu me chateara. Pedi-lhes perdão a todos.

               Serei tua embaixadora

               Em 1987, fui escolhida pela Moral Rearmament para ir para o Sri Lanka fazer o trabalho de reconciliação entre os Cingaleses e os Tâmiles. Até então eu conhecia as minhas raízes budistas mas não tinha grande relação com elas. Este foi o momento em que a minha fé voltou. Fomos a Kandy e eles levaram-nos para dentro do Templo do Dente. Eu fiz um voto diante do Mestre Buda. Mestre Buda, a tua filha está aqui. Por favor, fá-la saber que tu estás aqui. E assim que o disse, fiquei arrepiada. Então teve início o piti (êxtase) e eu chorei. Mestre Buda, vem agora e eu serei tua embaixadora. Peço-te que me esvazies de tudo o que representa coisas más, pensamentos maus e má vontade – tudo –, peço-te que o tires e substituas pelo Dhamma.

               Quando voltei, estava um professor de meditação justamente em Minneapolis. Uma amiga minha telefonou-me e disse:

               – Temos cá um professor de meditação muito bom. Queres ir vê-lo?

               Ele chamava-se Venerável Hem Hom; e era muito famoso no Camboja. Fiz um retiro; foi muito intenso. Demorou cinco dias até eu ver o fenómeno em mim. Reconheci de imediato que a única forma que eu tinha de efectivamente ajudar o povo cambojano era através da meditação – é tão potente, que se pode usá-la para aliviar o sofrimento. Desse modo, soube que não dependia de forma alguma do exterior – somos nós que o podemos fazer sozinhos, não precisamos de nada. Tão simples quanto isso.

               O tipo de meditação que ele ensinou? Só quando vim para aqui é que fiquei a saber que o método que ele me ensinou foi a técnica de Mahasi.

               Entre tê-lo conhecido e ter-me juntado às Nações Unidas em 1991, passei por uma grande transição: perdoar completamente os Khmer Vermelhos. Isso livrou-me do peso que trazia comigo – senti a minha energia a surgir como se tivesse removido um bloqueio enorme. Levou dois anos desde o ponto em que fiz a declaração a toda a assembleia em Caux, até estar totalmente curada. Criei um projecto chamado Cambodian Children’s Education Fund [Fundo de Educação das Crianças Cambojanas], com a intenção de levar essa menagem de perdão a todos os campos, de ajudar os refugiados dos Khmer Vermelhos, bem como as outras facções. Eu queria trazer a reconciliação ao Camboja e reconciliar os professores primeiro, para que os professores pudessem ensinar as crianças. Obtive financiamento dos Estados Unidos e de outros governos. A ideia era preparar o terreno para as pessoas antes de elas voltarem para o Camboja quando o Vietname se retirasse. Enquanto elas estavam nos campos, podiam ser todas reunidas no mesmo sítio. Eu promovia a reconciliação entre khmers vermelhos e não khmers vermelhos. A minha ferida encontrava-se sarada quando eu estava com eles.

               Antes de eu lá ter ido pela primeira vez, ninguém podia entrar no campo dos Khmer Vermelhos. Eu tinha contacto com um Senador no Minnesota, o senador Boschwitz, e com o apoio dos Estados Unidos, fomos lá com a autorização do Governo tailandês. Inclusive tivemos permissão para trazer os refugiados com quem trabalhávamos para eles se conhecerem uns aos outros nos nossos workshops – com a minha vida como garantia: se eles fugissem, eu ia para a prisão.

               Juntos reconstruiremos

               Andei de campo em campo. Alugámos carros para os transportar. Eu estava assustada. Tinha de fazer a viagem com khmers vermelhos, enquanto os outros membros do meu grupo a faziam com os que não eram khmers vermelhos. Eu não achava que eles se fossem atrever a fazer-me alguma coisa; pelo menos tinha um amigo como condutor. O workshop era num hotel do Governo em Banguecoque.

Como correu? Podiam confiar uns nos outros? O workshop correu bem. Eram cerca de setenta pessoas, incluindo quatro facções cambojanas. No nosso primeiro encontro havia cerca de quarenta professores sentados em U. O líder dos Khmer Vermelhos deu início dizendo:

– Hoje é a primeira vez em dez anos que veio alguém assistir o nosso povo em questões de educação. Portanto, damos-vos as boas-vindas, por nos trazerem este tipo de ajuda, que é aquele de que mais precisamos. Eu gostava que nos ajudassem a conceber um currículo para as nossas crianças. As crianças cambojanas têm de ser preparadas para lutar até ao fim, para libertar o nosso país dos estrangeiros. Sobretudo dos nossos vizinhos.

               Ele prosseguiu nesta linha e eu interrompi-o. Levantei a mão e disse:

               – Irmão, peço desculpa por interrompê-lo, mas não posso continuar a ouvir. Essas crianças estão muito limpas. Nós estamos a ensiná-lo a si para que possa ensinar as crianças. Não lhes dê o nosso sofrimento. É demasiado. E eu gostaria que ouvisse a minha mensagem. O irmão fez tanto mal ao nosso país enquanto Khmer Vermelho. Eu odiei-o, eu odiei-o de facto, e agora sei que odiar está errado. Como é que eu sei? Isso fez mal ao meu corpo. A minha inteligência estava toldada. O ódio era tão forte, que eu queria cortá-lo a si aos pedaços. Isso fez-me passar por dez anos de desorientação. Estou ciente disso. Agora peço-lhe que me perdoe por eu o ter odiado a si. Que me deixe limpar-me.

               Depois de eu lhe ter pedido isto, acrescentei:

               – E em troca, também o perdoo a si pelo que fez. À minha família: o meu marido, que eu amava muitíssimo, desapareceu. E aos meus familiares. E por ter virado o país de pernas para o ar, por o ter virado do avesso. Eu perdoo-o. O passado é passado. Daqui em diante, comecemos juntos. Limpos.

               Parámos aí. Enquanto falava, mantive contacto visual com cada um deles. Alguns choraram, outros estavam apenas frios. E no final houve umas quantas senhoras que vieram ter comigo e me abraçaram, dizendo:

               – Espero que os Cambojanos daqui em diante nos possam perdoar, como a senhora, para que possamos viver juntos.

               – Sim. Façam a vossa parte. Eu farei a minha. Juntos reconstruiremos o Camboja.

               Deste modo, conseguimos avançar e perguntar-lhes do que precisavam para ajudar na educação. E todos eles disseram que era preciso liderança, que era por isso que o país estava uma confusão. Então, compusemos um programa de liderança para eles. Todos os anos iríamos ao campo para ajudar a instaurá-lo, pois eu não acreditava que se pudesse escrever um currículo nos Estados Unidos e tentar implementá-lo no Camboja. Há que fazê-lo no local.

               Com os ouvidos e os olhos abertos

               Quando o Acordo de Paris de 1991 lançou as bases para a retirada vietnamita e de forma a que o Camboja se pudesse tornar uma democracia multipartidária sujeita à autoridade de um monarca constitucional, Renée/Bodhipala foi convidada para se juntar à missão das Nações Unidas, ATNUC [Autoridade de Transição das Nações Unidas no Camboja], ficando encarregue de supervisionar a transição. Então despediu-se do seu emprego no Minnesota e trabalhou como oficial de eleições, tradutora, técnica e administradora de sistemas informáticos – bem como locutora de rádio, na esperança de que se o marido ainda estivesse vivo, pudesse ouvir a sua voz.

               Nunca soube nada do seu marido? Não. Era muito complicado procurar porque ele era muito famoso. Nunca se sabe onde é que as nossas perguntas vão parar, se a um inimigo ou a um amigo. Eu não me atrevi a dar o nome dele à Cruz Vermelha, que procurava pessoas desaparecidas. Mas lá no fundo eu estava à procura dele, com os ouvidos e os olhos abertos.

               Durante a preparação para as eleições, voluntariei-me para ser tradutora em operações por todo o país, na esperança de ter notícias dele. Fui com o pessoal das Nações Unidas e trabalhei com o KGB, a CIA, a maioria dos serviços secretos, a traduzir as entrevistas dos khmers vermelhos. Por vezes tratava-se de relatos de assassinatos horríveis. Ao fim do dia eles recolhiam o nosso testemunho: não era suposto pensar mais sobre o assunto. “Vocês estarão em perigo se não apagarem isso da mente.”

               Também fazíamos inspecções-surpresa às mesas de voto em busca de fraudes. Era perigoso; por vezes eles matavam trabalhadores políticos duas ou três horas antes de chegarmos, ou simplesmente queimavam as provas. Nós chegávamos pelo ar, pela água e por terra, sem aviso. Fiz muitas coisas pelo país. Montei, por exemplo, um sistema informático para gerir as folhas de pagamento militares e governamentais de modo a prevenir a corrupção. Era muito gratificante, poder fazer algo para ajudar o meu país durante essa altura.

               Agora, enquanto monja, este é o melhor período da minha vida. Nunca pensei que me tornaria monja quando o país se desmoronou. Mesmo quando o meu professor, Hem Hom, estava doente em 1994 e no hospital me pediu:

– Quero que sejas ordenada. Qual é a percentagem que te impede de o fazer?

Eu disse-lhe que ainda tinha responsabilidades, que talvez o obstáculo estivesse nos 15 por cento. A minha mente já queria ser monja em 85 por cento.

Permaneci no Camboja depois de a ATNUC partir, a trabalhar sem remuneração em várias áreas. Juntei-me à minha amiga Nat Nary, uma monja sénior de um mosteiro em Battambang, cuja abadessa era uma excelente professora de meditação, e implementei um projecto chamado Mental Health Counselling [Aconselhamento em Saúde Mental] a partir de lá, pois conhecia a essência da meditação. Nessa altura, o Camboja não tinha hospitais de saúde mental; tinham sido destruídos durante a guerra. A ideia era integrar assistência psicológica e meditação num lugar onde se disponibilizasse a ajuda de um bom professor. Houve muita gente com problemas mentais a vir ao mosteiro para obter a ajuda da abadessa e de Nat Nary. Criou-se um sistema para tratar os pacientes e formou-se cerca de uma dúzia de monges e monjas para prestar aconselhamento e assim ajudar a abadessa a receber mais pacientes.

Em 1996, fui convidada pelo Venerável Maha Ghosananda para fazer uma peregrinação à Índia. Duas ou três semanas antes da nossa partida, pensei: Ora bem, eu vou visitar o Mestre Buda. Qual será a melhor coisa que lhe posso oferecer? Decidi oferecer-lhe o meu cabelo: tornar-me monja, submeter tudo ao Mestre Buda. Portanto, quando vim para Amaravati, já estava vestida de branco.

Flor, flor, flor,

Estávamos em 1997, após se ter dado o golpe de Estado no Camboja. Eu estava desapontadíssima. Recebi um convite por parte dos Estados Unidos para me encontrar com o grupo da Moral Rearmament. No regresso ao Camboja, parei em Caux, e o David Channer convidou-me para visitar Amaravati. Passados dois meses, pensou-se em convidar Luang Por Sumedho para ir ao Camboja. O Luang Por aceitou sem pensar duas vezes, mas eu estava preocupada com a segurança; receava que me pudessem prender no aeroporto por estar tão envolvida com a política. Ouvi as notícias através do Voice of America para me informar, mas ao fim de um bocado o meu medo foi substituído pelo sentimento de protecção do Dhamma que vinha da presença do Luang Por. Assim, atrevi-me a ir para o Camboja sozinha, antes dos outros, para preparar o terreno para a visita.

Como é que foi vir viver para Amaravati? Senti-me muitíssimo confortável aqui. Conheci logo a Ajahn Thaniya e disse que queria envergar os hábitos castanhos. Só que não funciona assim. Sim, por vezes foi difícil. Eu estava acostumada a uma cultura diferente, a um estatuto social diferente; de repente vi-me na cozinha e a limpar as casas de banho e tudo mais. No entanto, a minha fé era tão grande, que eu conseguia fazer o que quer que fosse. E os eventuais problemas de viver com pessoas diferentes podiam facilmente ser esquecidos, porque o meu sofrimento por ter perdido o ente querido fora tão profundo, que tudo o resto se ficava pela superfície, e era-me suportável. Quando há uma evidência de que ele morreu, pode-se seguir em frente; mas quando não se sabe, como é que se lida com isso? É muito complicado. Porém, agora já é tudo passado. Ao viver com os outros aqui, quanto mais praticamos mais sensíveis nos tornamos, e quando vejo que alguém não mostra boa-disposição comigo, pergunto:

– Fui insensível contigo? – E corrijo a situação logo ali, assim que acontece:

– Não era minha intenção.

Também tive de me ajustar. Primeiro foi-me atribuída a tarefa das flores. Era muito difícil fazer o que as monjas queriam que eu fizesse no tempo disponível, apenas no período de trabalho da manhã – eu fazia uso de mais tempo porque não estava habituada. Elas disseram-me que não era suposto fazer isso, a tarde é o teu tempo para meditar. Isso perturbou a minha meditação. Quando me sentava, as flores continuavam a vir-me à mente. Flores e folhas de que cor… onde as irei pôr… e por aí fora. Por fim, acabei por usar “flores” como mantra. Em vez de Buddho, apenas florflorflor – e funcionou! A minha mente calou-se. Portanto, usava isso quando tinha qualquer coisa para fazer: continuei a mudar o meu mantra de acordo com o que se passava na mente. A mente agarra-se a algo, e para travar isso eu coloco esse algo num mantra e a mente fica sem tempo para se distrair.

Usava o mantra com a sua atenção no corpo ou na respiração ao mesmo tempo, ou apenas na palavra? Eu fora instruída a usar uma palavra em conexão com a inspiração e a expiração, e também a reparar caso alguma coisa acontecesse através das portas dos seis sentidos. Continuei a criar o meu próprio mantra, lidando com os problemas que ocorrem na mente, até não haver mais pensamentos. Depois, ao fim de uns meses a praticar aqui, o som do silêncio tornou-se o meu objecto de meditação. Tão bonito! Ao princípio foi difícil de perceber, mas depois vi que era muito profundo.

E tem usado o som do silêncio desde então? Desde então que fiquei a saber que é uma ferramenta poderosa. Uso-a, excepto quando me distraio; quando há problemas, volto a usar o mantra.

Ensinei a minha mãe a usar o som do silêncio também. Antes de ela morrer, resolveram-se uns quantos problemas entre nós. O primeiro deles foi que eu tinha deixado de comunicar com ela e com o resto da família no Vietname há muito tempo. Eles viviam com a dor de não saber onde é que eu estava, viva ou morta. O segundo foi ter deixado a minha mãe assumir que não tinha sido uma boa mãe por me ter dado tão pequena.

Antes de eu estabelecer contacto com a minha mãe e o meu pai no Vietname em 1993, eu não tentara fazê-lo, porque odiava os comunistas e para além disso tinha medo que escrever-lhes da América os pusesse em risco. Só que a minha mãe achou que eu não a contactava porque a odiava por me ter dado em criança. Ela não sabia que era a minha heroína.

– Mãe, tu não me deste, fui eu que pedi. Não te sintas mal, pois acabei por me tornar uma mulher bem-sucedida. Agradeço-te por teres aceitado o meu pedido para partir – disse-lhe eu. E antes de ela morrer, pedi-lhe perdão.

Da primeira vez que lá voltei, vi que eles tinham uma cabana. Com aquela idade, e depois de passar tantos anos a criar nove filhos, eles continuavam a viver numa cabana com o céu como telhado. Senti-me tão triste, que construí uma casa para ela – uma casa em tijolo. Nunca tinha feito nada tão grande na minha vida. Eu própria não tinha uma casa minha, mas gastei o meu dinheiro a fazer uma para eles. Os meus pais estavam muito orgulhosos. Toda a gente na aldeia disse:

– Foi uma filha que fez isso? Como é que se cria uma filha de forma a que ela seja capaz de fazer tal coisa por nós?

A minha meditação melhorou substancialmente. Eu livrara-me do arrependimento por não fazer as coisas. Fazemos o que podemos. No funeral do meu pai, toda a gente ficou naquela casa enorme. Eles nunca tinham tido uma casa assim.

“Tens de estar consciente, percebes?”

A sua mãe morreu há apenas uns meses. Ensinou-lhe meditação? Sim. Rejeitei o meu lado vietnamita e o Dhamma de facto ajudou-me a entender isso. Eu queria partilhar isso com a minha mãe. Pensei: Estou em dívida para com a minha mãe. Porque ela foi a minha primeira professora. O que é que eu posso fazer para a ajudar? Dois anos antes de ela morrer, ensinei-lhe meditação. Ela estava toda contente a falar de comida, da minha presença lá, a ouvir histórias antigas. E eu decidi: É melhor fazer alguma coisa agora. Eu não vim cá para falar de comida.

Então fui para a cama dela logo de manhã cedo.

– Mãe, eu gostava de partilhar uma coisa contigo. Desde que fui ordenada, é isto que eu estudo. E é desta forma que eu preparo a minha vida para a morte. Queres estar com o Mestre Buda?

– Sim! Quero estar com ele – respondeu ela.

– Mamã, ouves algum som? – Eu não me alonguei em explicações. Ela disse:

– Sim, ouço o cão a ladrar, barulho dos insectos…

– Não, não, não.

Houve um último barulho que ela ouviu.

– Isto é o som dos grilos? Tem um fluir contínuo.

E eu ripostei:

– É isso, mãe. É isso. Escuta outra vez.

Ela escutou.

– Uau… É contínuo. Se bem que muito triste. É monótono.

– Eu acho que ao princípio é triste, mãe, mas quanto mais tempo te mantiveres a ouvi-lo, melhor ficas. É bem melhor para ti do que ver telenovelas.

No dia seguinte ela estava entusiasmada – inclusive ensinou a minha irmã:

– Oh, eu quero contar-te. É que para ouvir aquele som, tens de estar consciente. De outra forma não o consegues ouvir. Escuta! Tens de estar consciente, percebes?

Ensinei-a a cumprir os cinco preceitos, e mais tarde a usar o mantra Sugato.

Quando ela morreu, toda a sua família esteve presente. Foi muito silencioso. Ela simplesmente fechou os olhos, e foi só isso. Eu pus toda a gente a entoar o mantra que ela tinha usado: “Sugato, Sugato, Sugato”, toda a divisão cheia de Sugato. Estavam todos muito atentos, e foi dessa forma que ela morreu.

Foi bom estar de volta – inclusive no Camboja no ano passado. Passei o vassa no mosteiro de meditação em que tinha começado. Antes de vir, o meu objectivo era partilhar a meditação com o povo cambojano para os ajudar a aliviar o seu sofrimento. Então regressei para ver como é que as coisas estão agora. Era a primeira vez em nove anos que passava tanto tempo longe de Amaravati, quase quatro meses. Sentia-me muito confortável aqui, mas sabia que era uma coisa que tinha de fazer.

Voltando para ver os meus amigos que ainda lá trabalhavam, consigo ajudá-los mais do que quando era leiga. Na altura eu não tinha ideias novas para oferecer, mas com esta prática eu posso oferecer algo novo. Eles poderão pensar que sou egoísta, mas se eu não estou em paz aqui, como é que eu posso dar paz a alguém? Tenho de tratar da paz em mim mesma primeiro. E no meu caso, deste modo também estou mais segura do que em qualquer outro lado. Sou monja, portanto as pessoas podem ver que eu não quero nada de ninguém. O meu nome era conhecido porque o meu marido era muito popular, daí que as pessoas pensem que eu podia desempenhar um papel importante no governo. Elas receavam que eu ficasse com a parte que lhes cabia – coisa que eu não quero. Logo, esta é a melhor forma.

Então a sua forma de ajudar o povo cambojano agora é simplesmente praticando o Dhamma? Pura e simplesmente o Dhamma. E não apenas o povo cambojano. Qualquer pessoa que se cruze comigo, eu basicamente ajudo-a.

É bom para mim agora, enquanto monja em Amaravati. Trata-se de um lugar muito bom, virado para a prática. Sinto uma grande alegria por viver aqui.