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Nibbana, Aqui e Agora | Luang Por Sumedho Abril 9, 2010
A dificuldade com a palavra Nibbana é que o seu significado está para além das palavras. É, essencialmente, indefinível.
Outra dificuldade é que vários budistas vêm o Nibbana (Sânscrito: nirvana) como algo inatingível – como algo tão elevado e tão remoto que não somos suficientemente merecedores de o realizar. Ou então vemos o Nibbana como um objectivo, algo desconhecido e indefinido, que devemos de alguma maneira tentar atingir.
A maior parte de nós está condicionada desta maneira. Queremos alcançar ou atingir algo que não temos. Desta forma, o Nibbana é visto como algo que, se trabalharmos arduamente, mantivermos os preceitos morais (sila), meditarmos diligentemente, tornarmo-nos monásticos e devotarmos a nossa vida à prática, talvez possamos alcançar – ainda que não estejamos certos do que é.
Ajahn Chah usaria as palavras “a realidade do não-apego” como definição do Nibbana: realizar a realidade do ‘não-apego’. Isto ajuda a colocá-lo num contexto, porque aqui o ênfase é em despertar para a maneira como nos apegamos e agarramos inclusivamente a palavras como “nibbana”, “Budismo”, “prática”, “sila” ou seja o que for.
Diz-se frequentemente que o caminho Budista é o do desapego, porém isso pode-se tornar apenas outra afirmação à qual nos apegamos e agarramos. É um Catch-22*: não importa o quanto tentemos fazer sentido, termina-se em confusão total devido à limitação da linguagem e da percepção. Temos de ir além da linguagem e da percepção, e o único modo de ir além dos pensamentos e hábitos emocionais é através da tomada de consciência – sermos conscientes dos pensamentos e das emoções. “A ilha para além da qual não se pode ir” é a metáfora para este estado de ser desperto e consciente, em oposição ao conceito de nos tornarmos despertos e conscientes.
Nas aulas de meditação, as pessoas começam frequentemente com uma ilusão básica, a qual nunca chegam a pôr à prova: a ideia de que “eu sou alguém com muitos apegos e muitos desejos e tenho de praticar de modo a livrar-me destes apegos e desejos. Não me devo agarrar a nada.” Este é geralmente o ponto de partida. Portanto, começamos a nossa prática a partir desta base e, muitas vezes, o resultado é a desilusão e o desapontamento, pois a nossa prática está baseada no apego a uma ideia.
Eventualmente, apercebemo-nos que independentemente do esforço que façamos para nos tentarmos libertar do apego e do desejo, ou do que quer que façamos – tornarmo-nos monges ou ascetas, sentarmo-nos por horas e horas, irmos a retiros vezes sem conta, fazer todas as coisas que acreditamos que nos vão livrar dessas tendências – acabamos por nos sentir desapontados, porque a ilusão básica nunca foi reconhecida.
É por isso que a metáfora da ilha para além da qual não se pode ir é tão poderosa, pois aponta para o princípio duma consciência além da qual não se pode ir. É muito simples, muito directo e impossível de ser concebido. Temos de confiar nisso. Temos de confiar nesta simples capacidade que todos possuímos de estarmos totalmente presentes e totalmente despertos, e começar a reconhecer o apego e as ideias que temos acerca de nós próprios, acerca do mundo à nossa volta, acerca dos nossos pensamentos, percepções e sentimentos.
O caminho da plena atenção é o caminho do reconhecimento das condições tal como elas são. Reconhecemos simplesmente a sua presença, sem as julgar, criticar ou louvar. Aceitamos a sua presença, quer sejam condições positivas ou negativas.
E, à medida que vamos confiando cada vez mais nesta consciência ou plena atenção, começamos a experienciar a realidade da ilha para além da qual não podemos ir.
Quando comecei a praticar meditação, a ideia que tinha de mim era a de alguém que estava muito confuso. Eu queria sair desta confusão e livrar-me dos meus problemas, e tornar-me alguém com um pensamento lúcido e que poderia um dia tornar-se iluminado. Foi isso que me levou (em direcção) à meditação Budista e à vida monástica.
Mas depois, reflectindo nesta posição de que “sou alguém que precisa de fazer algo “, comecei a ver isso como uma condição criada –uma ideia que eu tinha criado. E se eu actuasse a partir desse pressuposto, ainda que pudesse vir a desenvolver todo o tipo de aptidões e viver uma vida louvável, boa e benéfica para mim e para os outros, no fim da história, poder-me-ia sentir bastante desapontado por não ter atingido o objectivo do Nibbana.
Felizmente que na vida monástica tudo é direccionado para o momento presente. Estamos sempre a aprender a pôr à prova as nossas ideias acerca de nós mesmos e a vermos para além destas. Um dos maiores desafios é enfrentar a ideia de que ” sou alguém que precisa de fazer algo para se tornar iluminado no futuro “, através do simples reconhecimento disso como uma assumpção criada por nós. Aquilo que é consciente em nós, sabe que essa ideia é algo criado a partir da ignorância, ou da falta de compreensão.
Quando vemos e reconhecemos isto totalmente, então paramos de criar essas suposições.
Estar consciente não é fazer juízos de valor acerca dos nossos pensamentos, emoções, acções ou palavras. Ser consciente é compreender essas coisas integralmente – elas são o que são, neste momento. Desta forma, descobri que é muito útil aprender a estar consciente das condições sem as julgar. Assim, o karma resultante das palavras e acções passadas, tal como surge no presente, é inteiramente reconhecido sem ser deturpado, sem se tornar num problema. É o que é. Aquilo que surge cessa. Quando reconhecemos isto e permitimos que as coisas cessem de acordo com a sua natureza, essa realização da cessação dá-nos uma fé crescente na prática do desapego. Os apegos que temos, ainda que a coisa boas como ao Budismo, também podem ser vistos como apegos que nos cegam. Isso não quer dizer que tenhamos de nos livrar do Budismo; simplesmente reconhecemos o apego como apego e constatamos que nós mesmos o criamos devido à nossa ignorância.
À medida que vamos reflectindo sobre isto, a tendência para nos apegarmos às coisas vai diminuindo, e a realidade do não-apego revela-se naquilo que podemos chamar de Nibbana.
Se virmos a partir deste prisma, o Nibbana existe aqui e agora. Não é algo para alcançarmos no futuro.
A realidade está aqui e agora. É mesmo muito simples, mas está para além das palavras, da descrição. Não pode ser outorgado nem mesmo transmitido, apenas pode ser conhecido por cada pessoa, por si própria.
Quando começamos a realizar ou a reconhecer o desapego como o Caminho, podemos sentir-nos bastante amedrontados por isso. Pode parecer que está a ocorrer uma espécie de aniquilação: tudo aquilo que penso que sou no mundo, tudo aquilo que assumo como estável e real começa a desvanecer-se e isso pode ser assustador. Mas se tivermos a fé para continuar a aguentar essas reacções emocionais e deixarmos aquilo que surge, cessar, aparecer e desaparecer de acordo com a sua natureza, então encontramos a nossa estabilidade, não em alcançar ou atingir algo, mas em ser – ser desperto, ser consciente.
Há muitos anos atrás, no livro de William James ‘The Varieties of Religious Experience’ (“As Variedades da Experiência Religiosa”), encontrei um poema de A. Charles Swinburne. Apesar de ter aquilo que alguns descreveram como uma mente degenerada, Swinburne produziu algumas reflexões bem poderosas:
Aqui começa o mar que não termina senão no fim do mundo.
Onde nos encontramos,
pudéssemos nós ver o próximo farol de alto mar, para além
destas ondas que brilham,
Saberíamos o que homem algum soube
ou que olhar humano algum perscrutou
Ah, mas aqui o coração do homem palpita, ansioso pelo
desconhecido com venturosa alegria,
a partir da margem que não tem margem para além dela,
começa todo o mar.
(Extraído de “On the Verge”, em “A Midsummer Holiday”)
O poema é um eco da resposta do Buddha à pergunta de Kappa, que se encontra no Sutta Nipata:
A seguir vem Kappa, o estudante brahmin.
“Senhor, disse ele, “há pessoas presas no meio da corrente, no terror e no medo do ímpeto do rio do ser, onde a morte e a decrepitude os afogam. Para o bem deles, Senhor, dizei-me onde encontrar uma ilha, dizei-me onde existe terra firme, fora do alcance de toda esta dor.”
“Kappa,” disse o Mestre, “para o bem dessas pessoas presas no meio do rio do ser, oprimidas pela morte e pela decrepitude, Eu dir-te-ei onde encontrar terra firme.”
“Existe uma ilha, uma ilha para além da qual não podes ir. É um lugar de ‘não-existência’, um lugar de ‘não-possessividade’ e de ‘não-apego’. É o fim definitivo da morte e da decrepitude, e é por isso que eu o chamo de Nibbana (o extinguido, o sereno).”
“Há pessoas que, em plena consciência, o realizaram e estão completamente serenas, aqui e agora. Elas não se tornam escravos a trabalhar para Mara, para a Morte; elas não são subjugadas pelo seu poder.”
~ SN 1092-5 (traduzido por Ven. Saddhatissa)
Em Inglês, “nada” (nothingness) pode soar como aniquilação, como niilismo. Mas também se pode colocar a ênfase na palavra “existência” (thingness), e aí tem-se algo como “não-existência” (no-thingness). Portanto o nibbana não é uma coisa que se possa encontrar. É o lugar da ‘não existência’, da ‘não possessividade’ e do desapego. É um lugar, como disse Ajahn Chah, onde se experiencia “a realidade do não-apego.” Nibbana é uma realidade que cada um de nós pode conhecer por si mesmo – assim que reconhecermos e realizarmos o não-apego.
(Excerto de “The Island”, publicado na Primavera de 2010, edição de Buddhadharma)
Tradução de Filipe Reis
*Catch 22 é um livro de Joseph Heller, onde predomina uma lógica auto-contraditória, repleta de paradoxos e contra-sensos, sendo circular e repetitiva; a irracionalidade lógica prevalece em todo o livro. Daí a analogia, por não conseguirmos chegar a um consenso devido à limitação das palavras e percepções.